As Raízes da Literatura: O Estudo de Piero Boitani sobre a Influência Bíblica nas Grandes Obras Literárias

As Raízes da Literatura: O Estudo de Piero Boitani sobre a Influência Bíblica nas Grandes Obras Literárias

O trabalho de Piero Boitani revela a forte presença de passagens bíblicas nas obras literárias mais significativas, de Dante a Shakespeare, de Tournier a Saramago.

As Raízes da Literatura: O Estudo de Piero Boitani sobre a Influência Bíblica nas Grandes Obras Literárias

Piero Boitani, “Rifare la Bibbia: Re-Escrituras Literárias”, il Mulino, pp. 341, € 28

A famosa frase de Joseph Conrad, “escreve-se apenas uma metade do livro, a outra metade cabe ao leitor”, aplica-se perfeitamente às Sagradas Escrituras, a ponto de se tornar um ditado consagrado pela afirmação de São Gregório Magno de que a Bíblia cresce com o leitor. Assim, ao lado da centralidade da Escritura na teologia, surge a eternamente presente Tradição. Essa é uma abordagem recorrente nas obras de Piero Boitani, um verdadeiro mestre tanto para escritores quanto para exegetas e teólogos, que se dedicam a reescritas literárias, como o subtítulo de sua recente coletânea de ensaios sugere, com destaque para a letra maiúscula em “Escrituras”.

A análise de Boitani remete ao trabalho fundamental de Northrop Frye, que em sua obra clássica “O Grande Código: A Bíblia”, destaca como a Bíblia foi, por séculos, a fonte primordial para a arte, a literatura, a música e o pensamento ocidental. Nas suas páginas, muitos buscaram inspiração para criar figuras, eventos, símbolos e narrativas. A exegese bíblica não deve se restringir à pesquisa histórico-crítica da “letra” e do “espírito” das Escrituras, mas também explorar sua presença e vitalidade na cultura contemporânea. A própria Bíblia já reconhecia isso, ao incluir, sob a sabia orientação de Salomão, textos de séculos posteriores e de diferentes estilos, como Qoheleth, o Cântico dos Cânticos e o Livro da Sabedoria, além de reinventar incessantemente a narrativa do Êxodo, desde o relato original até as visões escatológicas do Apocalipse.

Continuando com a metáfora musical, o que Boitani propõe ao “refazer a Bíblia” equivale à execução de uma obra musical: a essência não está apenas na partitura, mas na sua interpretação vibrante. Como notou Luigi Pareyson em seu ensaio “Verdade e Interpretação”, as diversas interpretações não comprometem a singularidade da obra musical, pois a performance não é uma mera cópia, mas uma expressão vital da obra. Assim, devemos nos colocar na plateia e acompanhar a maestria de Boitani, que, como um maestro, conduz uma extraordinária orquestra de intérpretes.

Tal como em um concerto, o maestro lê a partitura de maneira abrangente, enquanto cada músico foca em sua parte específica. Em seu magnífico concerto literário, as onze composições que se baseiam em personagens ou temas bíblicos são conduzidas por uma voz principal, com o restante da execução confiado a um coro impressionante e diversificado.

Adotando uma perspectiva mais concreta, muitas peças dos ensaios de Boitani trazem à tona figuras como Dante ou Shakespeare, Milton ou Thomas Mann, e também Saramago ou Joseph Roth. O autor revela a riqueza literária que evoca os “tesouros novos e velhos” (Mateus 13,52), formando uma espécie de coral harmônico.

Diante dessa estrutura literária impressionante, somos tomados por uma sensação de admiração. Um exemplo é o capítulo que analisa a obra de Dante, que se dirige à Bíblia como uma constelação orientadora, ou, usando outra analogia musical, uma “teodia”, executada segundo as quatro chaves hermenêuticas tradicionais: literal, alegórica, moral e anagógica. A sugestão final de Boitani aos leitores é para que selecionem aleatoriamente um canto da Comédia e descubram ecos, referências e remissões bíblicas, apenas para perceber que Dante não apenas reescreve, mas sim compõe sua própria Bíblia. Há quem tenha contabilizado 588 citações bíblicas intercaladas nos 14.223 hendecasílabos dessa obra.

Outro aspecto fascinante se revela nas obras de Shakespeare, sempre explorando um jardim repleto de símbolos, histórias e personagens que o dramaturgo cultivou, costurando elementos das Escrituras nos momentos mais cruciais de suas peças. Ele também não hesita em enfrentar os dilemas éticos que permeiam sua narrativa, como exemplificado em “O Mercador de Veneza”. Se olharmos para o século XX, encontramos Faulkner e seu Moisés, que o convida a revisitar e retornar ao apelo ao “velho faraó, para deixar seu povo ir”, uma mensagem que ecoa no famoso espiritual afro-americano “Go down, Moses”, evocando o Salmo “In exitu Israel de Aegypto”, que também é caro a Dante.

Moisés reaparece nas narrativas de Michel Tournier, que sempre teve a Bíblia como estrela guia de suas histórias. O autor apresenta uma abordagem singular em sua referência a Cristo, especialmente em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, uma reinterpretação do evangelho de Lucas sob a perspectiva de Pilatos, com uma estrutura espiral, semelhante à do “Inferno” de Dante. No entanto, a narrativa de Saramago desafia e desconstrói as páginas sagradas, culminando na inversão das últimas palavras de Jesus: “Homens, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”.

Essas e outras “re-Escrituras”, que a princípio podem parecer controversas para alguns cristãos, evidenciam a fecundidade extraordinária e provocativa da Bíblia, da qual é impossível abrir mão, mesmo em nossa era de secularização. O que apresentamos aqui é apenas um vislumbre dos ensaios de Boitani, que abrangem uma diversidade de temas. A imagem que ele pinta não é apenas uma reflexão sobre literatura, mas também um exercício criativo de exegese, confirmando nossa análise sobre o Autor e o Leitor. Como destacado em “Doutor Jivago”, a Bíblia não se limita a um texto fixo, mas é um diário da humanidade, abrangendo tudo o que é eterno.