O teólogo e pastor valdense italiano, Paolo Ricca, que é professor emérito da Faculdade Valdense de Teologia, frequentemente discorre sobre a fé. Sua trajetória se dividiu entre pesquisa, ensino e atividades pastorais ao longo das últimas décadas. Como um estudioso da teologia, o seu olhar é, acima de tudo, um reflexo de sua paixão pelos fenômenos da experiência humana, muito antes de ser considerado um crente ou praticante.
A Existência do Além e o Conceito de Deus
A entrevista conduzida por Marco Bevilacqua foi publicada pela revista Rocca, em dezembro de 2021, e traduzida por Luisa Rabolini.
“A fé não surge do medo da morte ou da incerteza do futuro”, afirmou Ricca em uma conversa com Antonio Gnoli, publicada nas páginas do jornal Repubblica. “A fé é uma jornada que se estende para além de uma única vida”.
Com isso em mente, vamos explorar a definição de fé apresentada. É frequentemente dito que a fé é um dom. Professor Ricca, por que algumas pessoas recebem esse presente enquanto outras não?
A fé, sem dúvida, é um dom, no sentido de que ninguém pode simplesmente se apropriar dela. No entanto, é também várias outras coisas: é uma busca, um desejo, uma decisão. Muitas vezes, a ideia de que a fé é um dom serve como uma justificativa para evitar a responsabilidade do esforço de acreditar. Acreditar traz alegria, mas é também um trabalho que exige esforço para trilhar o caminho até a fé. Essa jornada não é algo que acontece de forma espontânea, exceto se estivermos dispostos a investir pessoalmente na busca. A metáfora do caminho não deve ser encarada de maneira absoluta, mas é útil para ilustrar que, no processo da fé, é necessário primeiro dar o passo, mover-se, sair da zona de conforto. Portanto, é essencial considerar tudo aquilo que nos antecede e prepara para a fé; esta não é um estado de graça imutável.
A fé pode ser vista como uma porta que temos diante de nós. Temos a opção de abrir ou não, mas, independentemente da escolha, é necessário movimentar a maçaneta para ultrapassar o limiar e acessar novas dimensões.
De fato, é isso. Também precisamos reconhecer que não existem evidências definitivas da existência de Deus.
As célebres cinco vias propostas por Tomás de Aquino que supostamente levam à fé são plausíveis e aplicáveis, mas nos conduzem a uma concepção de Deus que é mais próxima do arquétipo aristotélico, um “motor imóvel”, em contraste com o Deus da tradição judaico-cristã.
A realidade é que não temos certezas absolutas ou provas acerca de Sua existência. Se você me perguntar por que acredito, minha resposta é simples: eu não sei. E isso não é uma manobra retórica; é uma declaração sincera. Nessa perspectiva, concordo com Kierkegaard, que, quando elogiado por ser o exemplo do cristão perfeito, respondia humildemente que aspirava a ser apenas um cristão. Assim, também me considero. Nietzsche, por sua vez, refletiu sobre a singularidade de Cristo, afirmando que, na história, houve apenas um verdadeiro cristão que foi crucificado. Portanto, reitero que definir a fé apenas como um presente é uma visão extremamente limitada.
Estamos vivendo um tempo repleto de complexidades, incertezas e angústias. A mortalidade, agora mais evidente do que nunca, nos inquieta. Em uma de suas conferências, você abordou a ideia da ressurreição como a superação da memória da morte. Você relacionou a negação da vida após a morte e da persistência da alma como um ato de fé — uma vez que não podemos afirmar nem negar o além por meio da razão. Não espero que você dê uma solução para essa questão, mas gostaria que comentasse, à luz do que Epicuro disse (quando existimos, a morte não está presente e vice-versa), como você pessoalmente aborda a ideia do fim da vida?
Sinceramente, confesso que raramente penso nesse assunto. Embora minha trajetória de vida tenha sido longa e marcada por períodos de saúde debilitada que me trouxeram perto do que muitas vezes chamamos de fim, vivo como se a morte estivesse muito distante. Na verdade, é impossível conceber a morte enquanto estamos vivos, a não ser que um estado de saúde nos force a isso. A morte é uma realidade que está sempre ao nosso redor, quase como uma sombra constante, mas que, paradoxalmente, parece não existir. Para mim, o que vem após a morte é Deus, em Sua totalidade e essência. Na Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 15, o apóstolo Paulo afirma que “Deus será tudo em todos”. Ele não menciona ‘muitos’ ou ‘alguns’, mas ‘todos’, abrindo, assim, um horizonte sem fim que acolhe a todos. Esta visão de um além inclusivo, sem inferno ou purgatório, promove uma esperança acessível a cada um de nós. O que não experimentaremos em nosso corpo físico atual, Paulo descreve como um “corpo espiritual”, uma mensagem verdadeiramente libertadora.
Essa ideia é significativa, porque antes de sermos alma ou espírito, somos corpo. Assim, o conceito de um ‘tudo em todos’ que se manifesta em nosso corpo espiritual é uma mensagem de esperança. O que, comumente, chamamos de fim da vida é apenas uma transição, o encerramento da nossa existência material. Contudo, nossa essência não se limita à alma; somos a soma das particularidades que nos definem — nomes, histórias, individualidades que nos tornam únicos. Portanto, a vida após a morte nos apresenta uma experiência que, em última análise, é Deus.
Em 2015, o Papa Francisco, tornando-se o primeiro pontífice a visitar um templo valdense em Turim, fez um pedido de perdão por atos não cristãos, ou até inumanos, que ocorreram ao longo da história. Como você vê o impacto desse gesto na relação ecumênica entre católicos e valdenses?
As palavras de Francisco ressoaram fortemente e representam um marco histórico. No entanto, é importante destacar que, embora seu pedido de perdão seja muito significativo e carregado de positividade, não se trata de algo que ele possa carregar pessoalmente. Francisco não tem nada a ser perdoado, pois está distanciado dos erros cometidos por seus antecessores. O perdão não pode ser delegado a terceiros; apenas as vítimas, ou Deus, podem perdoar aqueles que lhes causaram sofrimento. Não posso absolver os opressores dos meus antepassados; posso apenas afirmar que fico contente em reconhecer que seu pedido denota uma disposição para a construção de um novo capítulo nas relações entre católicos e valdenses atuais.
Qual a sua avaliação sobre a contribuição do Papa Francisco para o mundo cristão?
Em termos de ecumenismo, o grande avanço começou com o Concílio Vaticano II. O mérito do Papa Francisco está em trazer à tona algumas verdades esquecidas do Vaticano II, que foram ignoradas por muitos papas após João XXIII e sufocadas sob uma década de silêncios ensurdecedores. Por exemplo, a hierarquia das verdades católicas estabelecida pelo Concílio não era devidamente respeitada, sendo que não todas as verdades estão no mesmo patamar. O dogma da assunção de Maria, por exemplo, não possui a mesma relevância que o dogma da Trindade, que é crucial para a essência da fé cristã. Essa distinção é vital para o diálogo ecumênico e, após anos de silêncio, Francisco foi o primeiro a falar sobre isso.
Outro aspecto importante é a ideia de unidade na diversidade, que ele destacou em sua exortação apostólica, Evangelii Gaudium. A noção de que a unidade cristã não anula a diversidade foi inicialmente proposta em uma assembleia mundial de luteranos, mas foi incorretamente atribuída a bispos católicos do Congo. O que realmente importa é que o papa tenha abordado essa unidade, um conceito central ao ecumenismo.
Francisco também demonstrou coragem em suas ações, como na visita a Turim e participação no culto luterano em Lund, que marcou as celebrações do quinto centenário da Reforma Protestante. Um papa que se comporta assim realmente apresenta-se como alguém livre, desprendido das tradições papais.
Portanto, ele pode ser visto como um papa revolucionário em sua própria maneira.
Entretanto, é necessário reconhecer um limite em seu pontificado. Digo isso com grande respeito e carinho, sentimentos que nunca havia experimentado antes em relação a um papa.
Esse limite é que, apesar dos passos que deu, o papa não alterou a doutrina católica em essência, apesar de seus gestos que indicam uma mudança substancial. Questões como o sacerdócio feminino e a classificação das Igrejas Protestantes ainda são interpretadas como “comunidades eclesiais”, uma designação vazia, como se fossem igrejas incompletas ou inacabadas.
Essa forma de ver a realidade ignora o verdadeiro reconhecimento. Como valdenses, pertencemos a uma Igreja que tem sua história há oitocentos anos. Nossa trajetória é marcada por dificuldades e mágoas. Portanto, acreditamos que merecemos um reconhecimento pleno, pois somos e sempre seremos uma Igreja.
A pandemia de Covid-19 e a crise climática têm enviado mensagens claras sobre a urgência de uma mudança radical em nossa relação com a natureza e com os outros seres humanos. Acredita que viver de acordo com os princípios cristãos pode fomentar ações mais conscientes e cultivar esperança em um mundo cada vez mais secularizado?
Defender a fé cristã poderia sim trazer um benefício significativo; talvez seja a verdadeira solução que precisamos para recuperar a consciência sobre o que significa crer no Deus Criador. No cânone da Missa, Deus, criador do universo — ou multiverso, se preferir — ocupa um papel central.
Ao analisarmos o Credo, percebemos que a ideia de criação não é amplamente mencionada na prática litúrgica ou na vivência cotidiana dos cristãos. A grande maioria da atenção da fé cristã tem se concentrado na redenção, negligenciando o ato de criar. A Terra nos pertence, mas não somos seus proprietários; somos meros hóspedes. Gastando nosso tempo na Terra, devemos respeitar as regras da hospitalidade.
O ser humano é, indubitavelmente, o ser mais perigoso que existe. Temos culpa no etnocídio, não apenas em relação a pessoas, mas a inúmeras espécies de seres vivos exterminados pela ação humana. O desmatamento é um crime, assim como a exploração animal intensiva, que persiste no mundo. Atualmente, 17 bilhões de animais são abatidos a cada ano para abastecer nossas mesas. E tudo isso ocorre porque, embora os cristãos possam retoricamente afirmar que acreditam em Deus como criador, essa crença não se reflete em comportamentos concretos. Existe uma falta de consciência sobre o fato de que somos hóspedes neste planeta, bem como sobre os perigos que impomos ao restante dos seres vivos.
Portanto, estaríamos em conflito aberto com Deus?
Sim, essa é a minha percepção. Para os cristãos, a necessária conversão ecológica da qual tanto se fala deve estar intimamente ligada a uma conversão a Deus.
Como pastor da Igreja Evangélica Valdense, qual é a importância que você atribui à Reforma Luterana no século XXI?
Resumindo de maneira sucinta, poderia mencionar duas palavras: refundação e ressubstanciação. A Reforma Protestante alicerçou a fé cristã nas Sagradas Escrituras, incluindo o Antigo e o Novo Testamento. A Bíblia sempre teve um lugar de destaque na história da Igreja, mas a Reforma enfatizou a sua centralidade, colocando-a como base, em vez de um mero complemento à fé cristã.
“Fides ex auditu”, dizia São Paulo, onde a Palavra de Cristo ecoa, se não nas Sagradas Escrituras (o anúncio no Antigo e o cumprimento no Novo Testamento)? A Reforma também ressubstanciou a fé cristã, reanalisando questões fundamentais como a identidade de Deus, o papel de Cristo, o significado da fé e a natureza do homem.
Com uma vida rica em experiências, encontros e desafios, que marcas profundas você reconhece em sua trajetória?
Essa é uma pergunta bonita, mas que não consigo responder com precisão. Não sabemos exatamente como nos tornamos quem somos, nem quem foram nossos verdadeiros guias. A única certeza que temos é que somos parcialmente responsáveis por nossa formação, mas também somos resultados de decisões que não foram apenas nossas. Ao olhar para o passado, percebo que minha família e as minhas raízes valdenses influenciaram profundamente minha formação. Aprendi lições valiosas com meus pais, meu irmão e minhas irmãs.
Além disso, tive vários mestres ao longo da vida e continuo a tê-los, porque o aprendizado nunca cessa. A vida é uma escola constante, mesmo para alguém como eu, que já completou 85 anos.
A revista que nos abriga sempre se propôs a ser uma janela aberta para o mundo católico, buscando abordar esses temas de maneira clara e sem preconceitos em relação ao “outro”. Como leitor da Rocca, que temas você gostaria de sugerir para futuras edições?
A Rocca é uma excelente revista que merece reconhecimento pelo trabalho que realiza. Se eu puder fazer um pedido, sugeriria que ampliassem o foco, não se limitando ao mundo católico, mas considerando a cristandade de uma forma mais ampla. Em especial, gostaria que a revista abordasse mais as atividades do conselho ecumênico das Igrejas, que representam uma fonte de enorme enriquecimento para o cristianismo. Este é um campo que poderia agregar muito conteúdo à Rocca.
Neste sentido, esta entrevista pode ser vista como uma contribuição para o enriquecimento dos conteúdos abordados…
Exatamente, sim. Ela pode ser considerada um passo nessa direção.
"Oi, sou a Minerva! , uma leitora ávida e escritora dedicada. Com 25 anos, meu amor por livros me inspirou a criar este blog, onde compartilho resumos e resenhas sobre minhas leituras favoritas. Aqui você encontrará recomendações de livros, reflexões sobre temas importantes e minhas impressões sobre os personagens e enredos que mais me emocionaram. Se você é um amante de livros em busca de novas histórias para se envolver, junte-se a mim nesta jornada literária."
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